Espião do Exército admite que esteve infiltrado em grupo anti-Temer

Estopim de um caso emblemático na história recente envolvendo a espionagem da inteligência do Exército em grupos de ativistas e manifestantes brasileiros, o major Willian Pina Botelho – ou Balta Nunes, o codinome pelo qual se apresentava -, falou diante de uma corte pela primeira vez.

Ele prestou depoimento no caso dos 18 jovens detidos na região da avenida Paulista antes de um protesto anti-Temer em São Paulo, em 4 de setembro de 2016, acusados na Justiça de formar uma “organização criminosa”.

O major admitiu que estava infiltrado em grupos de WhatsApp e do Facebook formados pelos manifestantes detidos. Em seu depoimento de cerca de 40 minutos, por videoconferência, Botelho afirmou também que o grupo era “pacífico” e disse ter atuado sob cobertura legal de um decreto de Garantia de Lei e da Ordem (GLO), usado para regular a atuação dos militares em algumas situações, tanto para participar no grupo de manifestantes como para estar presente no local da detenção.

A justificativa do militar é alinhada com a do Exército, que, na época do ocorrido, questionado pelo EL PAÍS, já havia justificado uma possível ação na cidade naquele dia baseada na GLO editada para monitorar a passagem de tocha paraolímpica pela capital paulista.

Segundo advogados que acompanharam o depoimento transmitido no Fórum da Barra Funda, o militar levou leis anotadas para fundamentar seus argumentos, consultando-as em um papel de vez em quando. Alegou que havia sido colocado nos grupos virtuais, mas afirmou que não podia dizer por quem, porque estava protegido pelo departamento de inteligência do Exército. “Ele não quis polemizar, foi sucinto”, disse o advogado Thiago Rocchetti. Botelho também afirmou que a maioria dos integrantes do grupo não se conhecia pessoalmente, algo dito por alguns dos jovens na época à reportagem.

Naquele 4 de setembro, 18 jovens e três adolescentes foram detidos antes do protesto contra o presidente Michel Temer começar, na região da avenida Paulista, local por onde a tocha paraolímpica havia passado mais cedo. Eles foram levados após uma forte batida policial e passaram a noite na delegacia. A suspeita de que Balta era um infiltrado foi levantada pelos próprios jovens, quando perceberam que, apesar de ele estar no momento da batida policial, era o único que não havia sido levado ao Departamento de Investigações Criminosas (DEIC) com os demais.

O grupo foi liberado na audiência de custódia no dia seguinte, quando um juiz considerou as detenções ilegais. Apesar da liberdade, todos foram processados depois que o Tribunal de Justiça aceitou a denúncia do Ministério Público de São Paulo (MPSP), que acusou o grupo de formar uma organização criminosa. A promotoria argumentou que os envolvidos carregavam objetos no intuito de vir a perturbar a ordem pública e depredar o patrimônio. Dentre os utensílios, estariam vinagre, máscaras e capuzes, material de primeiros socorros e uma barra de ferro.

Frentes do caso
Poucos meses após a descoberta de sua identidade, Botelho foi promovido a major e enviado pelo Exército para Manaus. Por essa razão, o depoimento do militar, que ocorreu a pedido de parte das defesas, foi feito por videoconferência. As declarações do major, que usava o aplicativo de relacionamentos Tinder para procurar “meninas de esquerda” para se relacionar, são cruciais para o caso, pois muitas pontas dessa história ainda seguem soltas. Em primeiro lugar, está o debate sobre o uso adequado da GLO, que tem como finalidade estabelecer orientações para o uso das Forças Armadas para “garantir ou restaurar a lei ou e ordem”. Para ser usada, no entanto, ela precisa ser decretada pelo presidente e ter uma data estabelecida para começar a valer e para ser encerrada. De fato, naquele 4 de setembro, havia um decreto de GLO na cidade de São Paulo. Mas ele vigorava somente até o final daquele dia em virtude da passagem da tocha. Como o major justifica sua participação no grupo antes daquela data é uma das perguntas que seguem sem resposta. A presença dele no Tinder, usando a identidade de Balta Nunes, aponta que sua atuação não ocorreu somente no dia em que a tocha paraolímpica passava por São Paulo.

Outro questionamento que não foi respondido é de quem partiu a ordem para que o major estivesse naquele local naquele momento. Essa pergunta foi feita na audiência, mas Botelho afirmou que não poderia responder, pois estava protegido por seu cargo no setor de inteligência. Antes dessa resposta evasiva se tornar pública, o procurador Marcos Angelo Grimone já havia aberto uma investigação, detalhada pela Ponte Jornalismo, para apurar se houve ordem para a ação e de quem teria sido. Grimone investiga se Botelho praticou os crimes de identidade ideológica e usurpação da função pública.

Saber de quem partiu a ordem também desvendaria a questão sobre se a ação do militar ocorreu em conjunto com a secretaria de Segurança Pública de São Paulo, algo admitido pelo próprio Exército, mas negado veementemente pela Secretaria, e desmentido pelos militares na sequência.

Apesar de o major ter dito que o grupo era pacífico, o caso envolvendo os jovens detidos e Balta Nunes ainda não terminou também. O depoimento do militar foi o último de uma série de oitivas, tanto por parte da acusação, quanto das defesas, incluindo policiais militares e testemunhas. O próximo passo será a apresentação das alegações finais do juiz, com prazo para que a defesa recorra, algo que não tem data para ocorrer, mas deve acontecer nos próximos dois meses. Depois disso, virá a sentença e para ela ainda caberá recurso. Apesar das etapas que ainda faltam, uma das acusadas no processo se diz “aliviada”. “É mais uma prova contundente de que somos inocentes”, disse ela, que preferiu não se identificar.

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