Manaus é a arte genial de Sérgio Cardoso

Betsy Bell

A coleção sob o título “Dramatis Personae”, é apenas uma pequena mostra do pensamento dele sobre a cidade que nasceu e ainda vive. Então, cuidado, caso você seja manauara! Porque quanto mais você a olha, mais se reconhece. Pode conferir abaixo. E, como essa explosão de identidade invade os olhos até chegar à alma, tudo se transforma em sentimentos que vão da alegria à angústia, da sensualidade ao drama, uma vez que as relações e performances sociais dos trabalhadores retratados, mais pedestres, consumidores, artistas de rua, mendigos, músicos e ambulantes estão ali, misturados ainda às cores vermelhas, amarelas, brancas, pretas, azuis e verdes. E aí você se dá conta que é apenas uma coleção de quadros, fotografias com interferências de pintura digital, mas que gritam o silêncio barulhento de um artista inquieto, vívido, crítico e vibrante, que circula pelas artes visuais como pintura, desenho, fotografia, cinema, design, videoarte e instalações artísticas há cinco décadas. Sem parar.

Sérgio Vieira Cardoso, portanto, é a prova viva que um homem de 71 anos é ainda um menino sonhador, mas que realiza e pode traduzir, sem palavras, a identidade de Manaus.

Na mostra que celebrou os 51 anos de sua carreira artística, na The Art Gallery, espaço cultural do Instituto Cultural Brasil Estados Unidos (ICBEU Manaus), Sérgio bem soube explorar a visão dele no que alcunhou de “Phoethicas do Vhão Urbhano”. Nela, ele conseguiu tirar 180 “photoplasthyas” das mais de três mil que tem no acervo pessoal. “É quase um filme sobre Manaus em fotos digitais com colagens e linhas de pintura”, declara.

E é mesmo. Nela, encontra-se os detalhes das pichações nos muros da cidade. “Todo mundo vai morrer!” está lá uma, datada de 2020, tempos da pandemia da Covid-19, onde o artista ressaltou em obra pigmentando as cores quentes, quase mórbidas entre amarelo queimado, azul desbotado, preto e vermelho escuro.

Outras três são rascunhos de talheres, muitos talheres jogados, onde Sérgio consegue, com sua interferência, fazer brilhar a cor cinza dos mesmos, tornando-os pura prata. “Isso não é uma pia. É uma bacia onde os talheres vão ser lavados no restaurante que eu frequento, o KiloMania. A inspiração é o movimento de todo dia. É um diário de garfos e facas”, explica o artista. E é, tanto isso, que a próxima obra, você se depara com uma Bíblia velha, em cima de um saco de lixo, aberta no livro dos Salmos. Quer mais que um diário “de garfos e facas” do que isso?!

Tem. Tem ainda o povo de Manaus. Eles aparecem muito como atores sociais em permanente cena, revelando justamente esses contrastes, uma teatralidade da vida urbana, com muita vitalidade. Na estética do cotidiano de Sérgio Cardoso, as cenas, aparentemente banais, ganham destaques. É um olhar antropológico das pessoas caminhando, descansando, se divertindo ou vendendo. A humanidade em foco, que ele tenta ressaltar:

“É que eu sou uma pessoa simples, de origem humilde. De uma família real, no sentido de uma família que lutava para viver. Era assim com meu pai, minha mãe, minha avó. É um olhar também da religiosidade urbana. Então, você vê, passa milhares de pessoas diante daquela cadeira ali, abandonada. Ninguém prestou atenção, mas eu descubro a cadeira. Numa quase-madrugada de domingo, aquela bicicleta estava lá amarrada, lá no Colégio Estadual. A mesma coisa com aquele sofá que estava no sol quente de um sábado, na Santa Casa. Aí, você tem palavras que as pessoas escrevem. E também tem as pessoas jogadas, fazendo algo. Todos eles, reunidos, contam uma história. Uma história de abandono”, resume Sérgio.

TUDO JUNTO E MISTURADO

Há quem se dedique a uma técnica, a um estilo ou a uma linguagem. Sérgio Cardoso nunca coube nesse molde. Sua trajetória é marcada pela pluralidade. A versatilidade de sua arte visual não poderia ser outra, senão a que engloba desenho, pintura, mais também escultura, fotografia, vídeo, cinema, literatura e design digital. Nesse espaço de “tudo junto e misturado” é onde ele expressa ideias, emoções, provocações ao público, questionamento do status quo.

Foi assim desde os 20 anos. Certamente, o reflexo de uma mente inquieta, de um artista que nunca aceitou limites. Não é à toa que um muro pichado, uma bicicleta esquecida, uma bíblia descartada no lixo, talheres empilhados numa pia de restaurante popular, tudo vira matéria-prima para narrar histórias sobre Manaus, sua gente e seus contrastes.

Quem descreve todas essas inspirações iniciais de Cardoso é o professor de Artes Visuais, Victor Hugo Reis, na dissertação de Mestrado em Sociedade e Cultura da Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas. Sob o título “Manaus era uma cidade baixa que você via de cima”: um estudo sobre as obras de Sérgio Cardoso nos períodos de 1970 e 1980, Reis consegue explorar todo esse início inspirador do artista, trazendo, inclusive, como essa carga transitou por toda trajetória do mesmo.

Reis explica que, primeiro, a inquietação criativa e a busca por referências moldariam a sensibilidade estética de Sérgio Cardoso. Cita, dessa forma, páginas coloridas dos gibis dos anos 1960 aos filmes exibidos nos cinemas do Centro, passando ainda pelo teatro juvenil dos padres capuchinhos, assim como as novelas de rádio e a literatura clássica. A formação de Sérgio, realmente, foi se construindo em camadas como se cada experiência fosse uma pincelada no quadro de sua vida.

“Para que Sérgio Cardoso desenvolvesse sua poética, ele teve que beber de diversas fontes artísticas/culturais, sociais e intelectuais (…) Aos 4 anos de idade desenhava trens, carros, ônibus, navios e, posteriormente, começou a criar suas histórias em quadrinhos”, destaca Reis, que também discorre sobre a paixão de Sérgio pelo cinema. “Ele era um frequentador assíduo dos cinemas de Manaus e a sessão do senhor Paulo Count, dono da sapataria Onça (…) Manaus era conhecida por ter uma programação cinematográfica diversa”, explica.

Para Sérgio, o cinema não fez parte apenas de sua formação artística. “O cinema é parte da minha vida. Nos anos 60, tinha o Ivens Lins. Ele era radialista também. Tinha um programa chamado ‘Cinemascope no Ar’, na rádio Rio Mar, sempre às 8h da manhã. Papai permitia que eu o ouvisse. Tinha essas coisas… Permitia que eu ligasse o rádio e ouvia o Ivens falar de cinema”, recorda Cardoso.

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De acordo com o jornalista, editor-chefe do portal CineSet, Caio Pimenta, Ivens Lima foi um dos principais nomes da história do audiovisual em Manaus. Ele era radialista, mais também apresentador de TV e um dos pioneiros do cineclubismo no Amazonas. Faleceu em 2022, na Carolina do Norte (EUA). “Na atração, ele fazia críticas dos filmes em cartaz na cidade de Manaus. Contou com o apoio de outros nomes promissores da época como José Alberto Saraiva, Pe. Luís Ruas, Márcio Souza e José Gaspar”, consta na reportagem “Morre Ivens Lima, nome fundamental da geração cineclubista dos anos 1960 no Amazonas”, assinada por Pimenta.

No estudo de Victor Reis, ele ainda ressalta como fontes de inspiração o rádio e o teatro para Sérgio Cardoso. Para Reis, O rádio que, para muitos era apenas companhia, foi para Sérgio um verdadeiro laboratório de criação. Sem imagens prontas, apenas com a força da voz e da música, ele aprendeu a moldar universos inteiros em sua imaginação.

Cada rádionovela ou canção era convite para arquitetar cenários, dar corpo a personagens e desenhar sentimentos invisíveis. Era assim com o que o artista ouvia em emissoras que embalavam suas tardes como a Rádio Baré. Foi nela que Sergio conheceu as primeiras novelas narradas pelo som e ouviu as músicas que se tornaram parte inseparável da sua vida criativa.

Admirador confesso de Gustav Mahler, Sivuca, Cláudio Santoro e da Música Popular Brasileira, Sérgio mesmo descreveu em entrevista à TV encontro das águas (2016) – transcrita para a dissertação de Victor Reis -, o efeito arrebatador dessas melodias. “Quando ouço essas músicas não vejo mais minha presença no espaço, sinto um trabalho fluindo, uma invenção acontecendo, a arte em mim se traduzindo”.

Se a música o levava a mergulhar na pintura, foram as radionovelas que o conduziram ao teatro. Tanto que antes das artes plásticas, Cardozo já se encantava com as histórias e dramas que ecoavam no rádio. E esse encontro com o palco nasceu cedo, ainda na infância, nas cadeiras do teatro juvenil dos padres Capuchinhos, na esquina das ruas Tapajós e Ramos Ferreira, em Manaus. Aos domingos, às 17h, o espaço se enchia de vida com peças, jogos, sorteios e orquestras. Para o menino Sérgio, cada apresentação era uma festa, e mais do que isso, uma iniciação ao mundo da dramaturgia.

REALIZAÇÕES CARDOSIANAS

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A trajetória de Sérgio é atravessada pela força de quem soube transformar Manaus em linguagem artística. No teatro, suas peças ganharam vida com um olhar singular sobre o urbano e o imaginário popular. Obras como A Herança Maldita de Mercedita de La Cruz e Carmen de Lazone não apenas receberam prêmios no Festival de Teatro da Amazônia, como também escreveram no palco o drama, humor e a crítica social com a intensidade de quem conhece as camadas profundas de Manaus.

Seus livros e dramaturgias publicadas consolidaram a memória do chamado “Teatro urbano das Mulheres de Lazone”, que ecoa vozes femininas e marginais, trazido para o centro do palco personagens que a história muitas vezes preferiu deixar à sombra.

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Nas artes visuais, Cardoso construiu uma carreira plural. Desde os anos 1970, participou de salões e coletivas que ajudaram a inserir a produção amazonense no mapa da arte contemporânea brasileira. Seus trabalhos conquistaram espaços como o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e a Pinacoteca de São Paulo, rendendo-lhe prêmios importantes, como “Viagem ao País”, concedido pela Funarte em 1985. Suas pinturas, instalações e fotografias dialogam entre a memória da floresta e a experiência urbana, tencionando fronteiras e revelando novas possibilidades de leitura de Manaus e também da Amazônia como um todo.

No cinema, a sensibilidade do artista e de cronista cultural se converteu em imagens em movimento. Sérgio dedicou-se a documentar personagens e histórias que ajudam a contar a identidade manauara, seja pela memória do cinema local, como em A Rainha dos Cinemas de Manaus, seja pela homenagem a artistas e cronistas que moldaram a vida cultural da região, como José Gaspar, Zeca Torres ou Aldízio Filgueiras. Em cada obra, construiu não apenas registros, mas narrativas afetivas que guardam a atmosfera da cidade e a potência criativa de seus protagonistas.

Como um olhar que é tanto local quanto universal, Sérgio Cardoso, sem dúvida, transformou sua produção em testemunho de riqueza cultural amazônica e, sobretudo, em prova de que a arte pode ser um espelho profundo da vida.

POR SÉRGIO

Ouvir Sérgio Cardoso é como atravessar uma ponte entre a Manaus visível e a Manaus secreta. Em suas palavras, os dejetos ganham memória, o tempo se torna gesto, a juventude vira espelho e até um beijo que nunca foi visto pode ser lembrado como o mais belo. O artista fala com a mesma naturalidade com que pinta ou fotografa: sem pressa, sem moldura, deixando que a vida escorra como tinta fresca sobre a tela. O que para muitos é banal, para ele é testemunho. E, ao transformar essas pequenas coisas em arte, Sérgio nos devolve a nós mesmos, em forma de poesia:

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PINTURA: “Sempre trabalhei a minha pintura com aspectos pictóricos. E a cidade e os seus dejetos. A cidade se renova diariamente em dejetos. Esses dejetos querem dizer alguma coisa. São pessoas que passaram por ali e deixaram coisas que não lhe interessavam mais, coisas que representaram um uso efêmero, transitório”

TEMPO: “Fotografar é registrar o tempo e o tempo é isso que nós estamos vivendo agora. A palavra que passou foi a palavra que passou. Os gestos que cometemos, mas conseguimos seguir em frente. A batalha do dia, a luta diária. É seguir. É o tempo”

ETARISMO E JUVENTUDE: “O etarismo é uma desculpa para não admitir quem tem talento. Eu fiz 71 anos como zero de vaidade, zero de egocentrismo, mas com uma alegria muito grande de estar entre a juventude. Uma juventude que nasce cinematográfica, com o celular na mão. Documentarista e extremamente registradora”

PRODUÇÃO: “Produzo à noite, depois de tudo. Sento, tomo café, como um sanduíche e fico, até hoje, até duas, três ou cinco da manhã. Porque tem todo esse apelo espiritual na construção da obra. Algo com a floresta amazônica, nessa visão abstrata que vocês estão vendo aí”

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MÃE: “Quando comecei a fazer exposições, me expus. E minha mãe dizia: Já vai se expor ao ridículo? Ela e meu pai não aceitavam. Mas, minha mãe foi a uma única exposição minha na vida dela. Ela foi levada pela minha esposa em 2018. Eu me assustei ao vê-la. Disse: Oi mãe, o que a senhora está fazendo aqui? E ela: Eu decidi ver esses seus borrões (risos). Mas, eu já vou embora. Não posso perder minha novela. Aí, eu disse: Mãe, pelo amor de Deus! Mas, fiquei super emocionado. Foi a única vez que ela foi”

ENCONTRO TEATRAL: “Eu tinha 8 anos quando fui ao teatro e vi o Grupo do Teatro Juvenil. Fiquei escondido, na coxia, vendo a peça. Eu, menino, vendo aqui. A peça era Morre um Gato na China, de Pedro Bloch (comédia de 1949). Então, tem uma cena que dá um tiro, quando deram o tiro, o personagem morreu e fecha as cortinas. Eu fiquei louco: Meu Deus, mataram o ator! Mas, fiquei fascinado”

PRIMEIRO BEIJO: “O primeiro beijo que eu vi na minha vida, eu não vi; ou ouvi. Na Rádio Baré. Foi com a Jerusa Santos e o Jaime Rebelo, que faziam um casal romântico de novela de rádio. E o narrador disse: Fulano e sicrano se beijam. E ficou silencia na rádio. E foi quando eu vi o beijo, na minha imaginação foi um beijo lindo. O primeiro beijo que eu vi na minha vida”

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