Cartografia é saída para indenizar pesca informal no Rio Doce
Mais de três anos após o rompimento da barragem da mineradora Samarco em Mariana (MG), centenas de pescadores atingidos em toda a bacia do Rio Doce ainda não receberam nenhuma indenização. Cada vez mais descrentes em relação à reparação dos danos, eles reclamam que a demora agrava os problemas financeiros. Segundo a Fundação Renova, entidade criada para reparar os prejuízos decorrentes da tragédia, a dificuldade na indenização se dá por causa da informalidade desses pescadores. Mas uma metodologia foi desenvolvida para superar os impasses neste ano.
Em linhas gerais, a proposta consiste na elaboração da chamada cartografia da pesca, que reunirá as características da atividade em cada comunidade. Assim que ela estiver concluída, os pescadores informais serão chamados e deverão entregar uma declaração na qual mais dois pescadores confirmam suas atividades. A partir daí, eles participarão de entrevistas de autonarrativa, cujo conteúdo será avaliado considerando sua compatibilidade com a cartografia da pesca na região. Ao fim do processo, será decidido o deferimento da indenização.
Essa metodologia, que ganhou o nome de Pescador de Fato, já está sendo testada em um projeto-piloto que envolve três comunidades. Em dezembro do ano passado começou em Regência e Povoação, distritos de Linhares (ES), na foz do Rio Doce. Nesta semana, teve início a elaboração da cartografia da pesca de Conselheiro Pena (MG). No fim da mês, a população será chamada para uma reunião em que receberá explicações sobre o processo de atendimento. No segundo semestre, o projeto poderá ser estendido para o restante da bacia.
“A participação das comunidades pesqueiras foi fundamental para o desenvolvimento dessa proposta inovadora. O termo ‘pescador de fato’ foi criado pelas próprias comunidades”, diz André Vasconcelos, que atua no Programa de Indenização Mediada da Fundação Renova. Ele explica que há ainda outra alternativa que substitui a entrevista de autonarrativa. Trata-se da apresentação de documentos oficiais secundários que possam comprovar a atividade pesqueira. “Pode ser, por exemplo, a certidão de casamento ou a certidão de nascimento do filho que tenha sido registrada antes do rompimento da barragem, no qual esteja constando a profissão de pescador”, explica. Nessa caso, embora elimine a necessidade da entrevista, o atingido ainda deve apresentar a declaração assinada por mais dois pescadores que reconheçam suas atividades.
André lembra que, em 2017, começaram a ser pagas indenizações a pescadores que têm a carteira da pesca e o Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP) ativo no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Nesse sentido, a nova metodologia é voltada para os atingidos que atuavam na pesca comercial e tinham a atividade como principal fonte de renda, mas não têm o documento que oficializa a profissão ou estão com o RGP suspenso porque não atualizaram seus cadastros.
“Há pescadores que têm somente carteiras antigas. Além disso, há ribeirinhos que, devido à sua simplicidade e ao seu modo de vida, muito ligado ao dia a dia da comunidade, não têm o documento. E diante dessa informalidade, esse público se viu alijado do processo e passou a demandar à Fundação Renova para que fossem reconhecidos entre os atingidos”, disse André.
A mesma dificuldade foi enfrentada por Fernanda de Souza, moradora de Barra do Cuieté, um distrito de Conselheiro Pena. Ela participou, no início da semana, da oficina de elaboração da cartografia da pesca, mas está descrente. “A Fundação Renova já veio aqui, fizeram uma vistoria do nosso material. Tiraram fotos da rede, das tarrafas, das varas, do caíque. Chegamos a receber, em 2017, uma carta reconhecendo que fomos impactados e informando que seríamos indenizados. Mas nunca saiu do papel”, afirmou.
Fernanda explicou que ela e o marido tinham a pesca como única fonte de renda. Além de vender na própria comunidade, eles comercializam o pescado em Governador Valadares (MG), mas nenhum dos dois tinha a carteira e o RGP. Ela acrescentou que há peixes na região onde mora, mas não pesca porque não consegue vender, uma vez que a desconfiança fez os clientes desaparecerem. Também há regras restritivas para a pesca no Rio Doce, que vigoram desde maio de 2017. Segundo Fernanda, sua situação financeira nunca esteve tão ruim.
“Moramos de aluguel. Durante um tempo, meu marido fazia um bico aqui e ali de pedreiro, mas depois não conseguiu mais trabalho. Estamos sem renda e a ponto de sermos despejados porque não pagamos o aluguel neste mês. Meu marido acabou surtando e está internado. Estou com as contas de água e luz todas atrasadas. Antes atrasava uma conta, mas depois pagava. Agora está tudo atrasado. E fiquei sozinha para enfrentar esse monte de problema”.
A falta de esperança também toma conta de seu Virgílio Pinto, outro pescador que não tem a carteira. “Já faz mais de três anos e não recebemos nada. Acho que não sai mais não. O dinheiro que a gente consegue dá para o aluguel e não sobra mais nada”. Segundo ele, boa parte dos apetrechos que possui não tem mais serventia. “Meu estoque de anzóis ficou todo enferrujado”.
Tanto Fernanda quanto Virgílio reclamam que não recebem nem mesmo o auxílio emergencial mensal, que não configura verba indenizatória e deve ser pago a todos os atingidos que perderam renda. O valor é de um salário mínimo, acrescido de 20% para cada dependente, além do valor de uma cesta básica. Eles também afirmam não ter conhecimento de nenhuma assessoria técnica atuando entre os atingidos na região. A situação contraria um acordo firmado em novembro de 2017 entre o Ministério Público Federal (MPF) e a Samarco. Ele estabelece que a Fundação Renova deve arcar com os custos da contratação de assessorias técnicas independentes que auxiliem os atingidos a reivindicar seus direitos.
Segundo dados da Fundação Renova, até o dia 31 de janeiro de 2019, cerca de 9 mil pescadores já haviam sido reconhecidos como vítimas do impacto da tragédia de Mariana. Para esse público, foram desembolsados até o momento R$ 790 milhões, entre indenizações e auxílio emergencial.
Avaliação
André Vasconcelos contou que a ideia das entrevistas de autonarrativa começou a se desenhar em abril de 2018 por meio do Conselho Consultivo da Fundação Renova, que inclui a participação de representantes dos pescadores. A entidade, no entanto, teria avaliado que lhe faltava legitimidade para avaliar os depoimentos dos atingidos. As lideranças pesqueiras também não se dispuseram a assumir a tarefa de dizer quem recebeu e quem não recebeu impacto.
Para solucionar o problema, o caminho encontrado foi estabelecer parâmetros que permitam a avaliação da autonarrativa. “Foi aí que nós identificamos a oportunidade de construir uma cartografia da pesca. É um mapa falado. Um mapa que traça perfis de pescadores de fato em cada comunidade. E as próprias comunidades pesqueiras de cada lugar vão nos dizer como se dá a pesca, quais são as espécies da região e atributos específicos de cada uma delas. Vão nos dizer, por exemplo, qual o período do ano de pesca, o horário do dia mais propício para cada espécie, quais os preparativos necessários, os apetrechos usados, os aspectos culturais da pesca na região”.
Em Regência, onde o projeto-piloto está mais avançado, 80 pessoas já estão na fase das entrevistas. Em Povoação, mais 46 estão nessa etapa. A autonarrativa de cada atingido será gravada em áudio e vídeo. Para analisar a compatibilidade das entrevistas com a cartografia da pesca foi contratada a empresa de consultoria Knowledge Media (KM), que deverá dispor de técnicos capacitados exclusivamente para a tarefa.
A proposta de valoração dos danos, elaborada pela Fundação Renova, também teria levado em conta reuniões periódicas com lideranças pesqueiras. O dano moral foi fixado em R$ 10 mil. Já o dano material varia de acordo com cada caso. Em algumas situações, os equipamentos sofreram danos. Além disso, a maior parte do dano material diz respeito aos lucros cessantes, relacionados à renda que o pescador tinha e deixou de ter.
Segundo André, a metodologia foi bem recebida por lideranças da pesca. Ele avalia que um processo frágil poderia trazer problemas às comunidades. “Eles também não queriam que pessoas que não são pescadores profissionais ou que nem são da comunidade se apresentassem e conseguissem se qualificar para receber indenização. Eles se sentem injustiçados quando isso acontece. E há receio, por exemplo, de que ocorram migrações para essas regiões em busca desse tipo de reparação”.
O advogado Leonardo Amarante, que representa diversas colônias de pescadores atingidas na tragédia, considera a iniciativa positiva. “Vai atingir pessoas que, até então, estavam alijadas do processo. Tem que ter certa flexibilidade para incluir os pescadores que não têm prova documental. Não conheço em detalhes a metodologia e, obviamente, é preciso ver os critérios que serão adotados. Mas acho que a saída é essa: chamar os pescadores para participar do processo ativamente. Estava faltando isso”.
Pesca de subsistência
Para mapear os atingidos pela tragédia de Mariana, a Fundação Renova organizou um cadastro dos moradores de municípios da bacia do Rio Doce que foram afetados. De acordo com André, cerca de 70% das pessoas que se cadastraram declararam impactos na pesca. “Vai desde pessoas que dependem da atividade para viver, até aqueles que pescam e comercializam eventualmente para complementar a renda e também os que pescam exclusivamente para subsistência”, explica.
No caso dos pescadores que não tinham a atividade como principal fonte de renda, a indenização ocorre por outra dinâmica. De acordo com a Fundação Renova, a maioria dos atingidos que pescam para subsistência já foi indenizada por meio de um enquadramento socieconômico, pois integra as populações ribeirinhas de baixa renda, situadas a menos de um quilômetro do rio. Esse público, considerado mais vulnerável, foi priorizado. “Sobre os demais pescadores de subsistência que não estão dentro desse critério, nós estamos em debate sobre a melhor forma de atendê-los. Ainda não temos a solução, mas estamos construindo”, informou André.
Fonte: Agência Brasil